Xande Canta Caetano traz versões do sambista para clássicos da MPB

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A música salva das misérias do cotidiano. Xande de Pilares sabe disso e, com os olhos cheios de cores, correu para o violão e a manhã nasceu azul. Em Xande Canta Caetano, assumiu a árdua tarefa de traduzir para o samba parte do repertório de um dos músicos mais queridos do país. Foi fundo e encontrou o acorde perfeito.

Cada estrela se espanta à própria explosão

Com uma carreira consolidada no samba, Xande de Pilares tinha lançado 9 álbuns e 4 DVDs até este ano, entre trabalhos solo e com o Grupo Revelação. Seu timbre grave e um rico repertório que transita entre samba-enredo, samba de roda, samba de raiz, samba-canção, pagode e outras variações o tornaram uma referência para qualquer fã do gênero. Agora, era vez de inventar e desinventar moda. Convidado pelo próprio Caetano Veloso e por Paula Lavigne para gravar 10 canções como parte das celebrações de 80 anos de Caetano, Xande se emocionou e colocou seu coração nesse trabalho.

Os arranjos surpreendentes do produtor musical Pretinho da Serrinha entraram nessa mistura boa em que nada falta. Tem lerê-lerê. Tem “salve, São Jorge”. Tem cavaquinho, cuíca, pandeiro, repique, surdo, tamborim, reco-reco, ganzá, atabaque, caxixi e tantã. Mas tem também trompete, violão de 7 cordas, acordeon, bandolim (com direito a participação especial de Hamilton de Holanda em “Qualquer Coisa”), gaita, contrabaixo e coral. O resultado? Reproduzido mais de 3 milhões de vezes por streaming, o álbum mostrou que cada estrela tem sua própria explosão.

“A ideia era sair do Caetano e trazer o Xande, fazer algo diferente. Eu cantando ‘Sampa’, por exemplo, seria chover no molhado”, contou Xande de Pilares em entrevista à Folha. A missão de escolher apenas 10 faixas não foi nada simples: com mais de 50 discos lançados em quase 60 anos de carreira, Caetano Veloso é um verdadeiro patrimônio da música brasileira. Sua história com o samba não vem de hoje e o borogodó de suas músicas já encantava os apaixonados por carnaval de rua. Em São Paulo, por exemplo, o bloco Tarado Ni Você, só com músicas de Caê, nasceu em 2014.

Mas se a ideia de Xande Canta Caetano era fugir do óbvio, a faixa inicial seria escolhida por razões emocionais. Para abrir o álbum, a eleita foi “Muito Romântico”, a primeira música de Caetano que Xande lembra de ter ouvido na vida (na época, na voz de Roberto Carlos, um de seus ídolos). A leveza, a elegância, o requinte harmônico, o ritmo contagiante e a letra (“Nenhuma força virá me fazer calar. Faço no tempo soar minha sílaba. Canto somente o que pede pra se cantar. Sou o que soa. Eu não douro pílula”) mostram porque o samba, além de pai do prazer e filho da dor, é uma das maiores riquezas do Brasil.

Por que não?

Com interpretações autênticas e mostrando sua personalidade musical, Xande enfrentou alguns desafios ao longo desse projeto. Ele contou em entrevista à revista Prosa Verso e Arte que “O Amor”, famosa na voz de Gal Costa, foi um deles. “É uma música difícil de cantar, porque tem muitos altos e baixos. No entanto, consegui regravá-la sem destoar e o resultado ficou lindo”, disse. Do agudo dela para o grave dele, o refrão que começa com “ressuscita-me” e vem embalado em violão e acordeon segue vibrante e apaixonado. A letra é um capítulo à parte: Caetano a escreveu inspirado em um poema do poeta russo Vladimir Maiakóvski, que combina amor e crítica social em frases como “Para que ninguém mais Tenha de sacrificar-se Por uma casa, Um buraco”.

Traduz perfeitamente o que Cacá Diegues disse no jornal O Globo em 2020: “A poesia de Caetano não é nunca molenga. Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa”. Nesse viés, impossível não pensar em “Alegria, Alegria”, apresentada em 1967 no Festival da TV Record, em plena ditadura brasileira. E assim, caminhando contra o vento sem lenço nem documento, Caetano conseguiu desagradar ao mesmo tempo os defensores da MPB clássica, os militantes do nacionalismo (com suas guitarras elétricas) e os intelectuais de esquerda, que o chamavam de alienado naquele contexto político. A versão de Xande é menos combativa e lembra um samba de breque com a companhia de nada menos que 12 instrumentos, além de um coral que traz a força necessária ao “Por que não?” do final.

Agora, se tem uma faixa que parece ser feita para o cantor Xande de Pilares, com repiques, tantã, agogô, atabaques e cavaquinho, essa faixa é “Lua de São Jorge”. O intérprete fica tão à vontade para cantar a lua brasileira e um dos santos mais populares do país que encerra a canção com seu bordão “alô, bateria”. Também brinca com a voz e os sons das palavras em “Tigresa”, que ganha um arranjo musical sofisticado. Na versão de Caetano, a música se inspira em Zezé Motta e Sonia Braga, mas, entre as mulheres que dão vida ao vídeo de 2023, está a dançarina Luara Bombom, passista da Salgueiro e cria da Comunidade Santa Marta.

Outro vídeo de alto impacto é o de “Gente”. Produzido pela Araguaia Filmes, ele traz somente pessoas comuns em uma sequência. Em um primeiro momento, elas aparecem sérias. Aos poucos, vão abrindo o sorriso, como se se transformassem ao sentir a cuíca e a animação na voz e na música de Xande de Pilares. A cara do Brasil. Na apoteótica faixa final do álbum, essa gente “espelho da vida, doce mistério” comove. Mais do que o clipe, porém, o que emociona é um vídeo que ganhou as redes durante a divulgação do disco, em agosto: o do próprio Caetano indo às lágrimas ao ouvir essa versão da música. Nesse ponto, quem ainda não tinha se rendido à sua palavra cantada não escapa de toda a graça, vida, força e luz de Xande de Pilares.

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